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domingo, 18 de agosto de 2013

Semiologia I: Hematologia

CURIOSIDADE

Por que a talassemia é conhecida como doença do Mediterrâneo?

Talassemia vem de tálassos do grego, que significa "mar".  Logo, quer dizer “anemia do mar". O termo anemia do mediterrâneo é também usado para descrever Talassemia.

Essa desordem hereditária promove a má formação da hemoglobina, sendo a doença genética mais comum do mundo. Causa uma alteração quantitativa, ou seja, há uma produção reduzida ou ausente da cadeia alfa ou beta da hemoglobina. No adulto, 97% da hemoglobina possui 2 cadeias alfa e 2 cadeias beta (hemoglobina A1), 2% possui 2 cadeias alfa e 2 cadeias  delta (hemoglobina A2) e o restante possui 2 cadeias alfa e 2 cadeias gama (hemoglobina F ou fetal). Sendo assim, pode haver a alfatalassemia (diminuição da produção das cadeias alfa) e a betalassemia (diminuição da produção das cadeias beta). Como resultado disso, ocorre uma anemia hipocrômica e microcítica.
É conhecida como doença do Mediterrâneo pela grande prevalência dessa anemia naquela região. Existe uma forte correlação com a epidemiologia da malária, pois é uma região endêmica para essa doença infecciosa. Sabendo que não só a anemia falciforme, mas também a talassemia promove um grau de proteção contra o plasmodium falciparum, o alto número de casos de talassemia no Mediterrâneo é resultado da seleção natural dos indivíduos nessa região. Por isso, questionar sobre a descendência do indivíduo é um ponto importante na anamnese (portugueses, espanhóis, italianos, gregos, egípcios, libaneses), pois pode ajudar a direcionar o diagnóstico.


CASO CLÍNICO II:

ANAMNESE:

ID: GHG, 54 anos, feminino, branca, natural e residente de Curitiba-PR, aposentada, casada.
QP: “Cansaço que não resolve”
HMA: Paciente refere que iniciou quadro de astenia e dispneia aos médios esforços há 1 ano, tratados com sulfato ferroso durante 6 meses. Relata que continua com os mesmos sintomas e com piora da dispneia aos pequenos esforços há 2 semanas associado a palpitações. Afirma também episódio de epistaxe há 4 dias. Outros sintomas associados são diarreia e emagrecimento de 5 kg em 2 meses com anorexia. Nega febre, artrites, infecções, rigidez matinal e parestesias.
HMP: Nega operações e internamentos anteriores. Refere artrite reumatoide, diagnosticada há 2 anos, em uso de metotrexate 10 mg/semana e hidroxicloroquina 400 mg/dia. Nega outras doenças auto-imunes. Nega também alergias e transfusões anteriores.
HMF: Pai faleceu com 60 anos de ICC. Mãe faleceu aos 70 anos de AR. Nega casos de outras doenças auto-imunes na família.
CHV: Ingesta de hortaliças 1 vez a cada 3 semanas, prefere carnes e massas. Nega tabagismo e etilismo.
RS: sp.

EXAME FÍSICO:

GERAL: BEG, LOTE, ictérica (+/4+), hidratada, hipocorada (+++/4+). PA: 120-80 mmHg; pulso: 112 bpm; FR: 28 rpm; T: 36,6°C.
PELE: Palidez intensa de pele e mucosas. Icterícia leve em escleras.
C/P: Olhos escuros com pupilas isocóricas e fotorreagentes. Escleras ictéricas (+/4+), conjuntivas hipocoradas (+++/4+). Língua despapilada e hiperemiada, vasos sublinguais cheios e presença de petéquias em palato. Ausência de linfonodomegalia. Jugulares não ingurgitadas.
CPP: MV + bilateralmente e simétricos sem RA.
ACV: Bulhas rítmicas e taquicárdicas com sopro sistólico (+/4+).
ABDÔMEN: globoso, flácido com RHA presentes. Hepatimetria de 6 cm em LHCD. Espaço de Traube livre. Som timpânico a percussão. Ausência de massas e dor a palpação.
NEUROLÓGICO:
- Estado Mental: LOTE. Glasgow: 15.
- Nervos cranianos: sp.
- Força e tônus muscular: tônus normal e força muscular de 5 bilateralmente nos MMII e MMSS. 
- Reflexos tendíneos: ++/4+ em bíceps, tríceps, braquiorradial, patelar, aquileu bilateralmente. Cutâneo plantar simétrico em flexão.
- Sensibilidade: vibratória e propriocepção preservadas.
- Marcha: sem alterações características
- Coordenação: movimentos rápidos e alternantes das mãos normais, index-nariz sem alteração.
- Equilíbrio: prova de Romberg negativa.
- Sinais Meníngeos: Kernig e Brudzinski ausentes.

EXAMES COMPLEMENTARES:

Hemácias: 2.360.000/L (4-5,5 milhões)
Hb: 8,1 g/dL (12-16)
VCM: 115 fL (80-100)
HCM: 30 pg (27-33)
CHCM: 32 g/dL (33-35)
Reticulócitos: 0,9% (0,8%-4,5%)

Leucócitos: 3.800 (4000-11000)
Eosinófilos: 5%
Linfócitos: 42%
Bastões: 5%
Segmentados: 43%
Monócitos: 5%

Plaquetas: 65.000 (120.000-400.000)

Bilirrubina direta: 0,17 (0,2 a 0,4)
Bilirrubina Indireta: 2,59 (1,0 a 1,2) 
                       
TGO: 30 (até 45 )                                            
TGP: 25 (até 40)

VHS: 18 (até 20)
PCR: negativo

Desidrogenase láctica: 1.842 (até 640)
Coombs Direto: negativo

Perfil do Ferro:
Ferro sérico: 180 (50-150)
Capacidade total de ligação ao ferro (TIBC): 250 (300-360)
IS: 55% (20-50%)
Ferritinina: 150 (12-150)

Qual provável diagnóstico?

Qual a provável causa da anemia?

Por que há uma diminuição de leucócitos e plaquetas também?

Qual o principal diagnóstico diferencial?


RESPOSTA AO CASO CLÍNICO II:

O diagnóstico é anemia megaloblástica (geralmente com VCM caracteristicamente > 110). Por definição é causada por defeitos na síntese de DNA, levando a divisão celular lentificada, mas com amadurecimento normal do citoplasma, por isso as células se tornam grandes com dissociação núcleo/citoplasma. As duas principais causas são deficiência de cobalamina (vitamina B12) e de ácido fólico (vitamina B9). Dentre as causas de deficiência de B12 estão a ingesta inadequada (vegetarianos estritos) má absorção (acloridria por IBP, gastrectomia parcial ou total, anemia perniciosa, ausência congênita de fator intrínseco, ressecção ou bypass ileal, ileíte regional [doença de crohn], outras ileopatias [actínica, doença celíaca], insuficiência pancreática, doença de Imerslund, drogas como colchicina, ácido paraminossalicilico, neomicina, metformina). Já entre as causas de deficiência de folato estão a ingesta inadequada (reserva de 4-5 meses), aumento das necessidades (gravidez, hemólise, malignidade, doenças exfoliativas crônicas da pele, hemodiálise), má absorção (Espru tropical, doença celíaca e drogas como fenitoína e barbituratos) e prejuízo no metabolismo (inibidores da diidrofolato redutase: metotrexato, pirimetamina, pentamidina e trimetropim; álcool).
A provável causa da anemia megaloblástica é deficiência de ácido fólico, consequente à baixa ingesta de hortaliças associado ao uso de metotrexato, inibidor da diidrofolato redutase que expolia o ácido fólico, apesar de infrequente na dose usada pelo paciente. Poderia ter sido feito a profilaxia com ácido folínico. As manifestações clínicas são as da própria síndrome anêmica e mais as específicas como petéquias e predisposição a sangramentos da plaquetopenia, glossite atrófica dolorosa (língua em frambuesa), queilite angular, diarreia e perda ponderal e a icterícia à custa de bilirrubinemia indireta, devido à hemólise, pois as hemácias são defeituosas sem reticulocitose. Já as manifestações neurológicas são exclusivas da deficiência de vit. B12 com sintomas do cordão posterior e feixe piramidal lateral, levando ao desequilíbrio, perda da propriocepção, diminuição da sensibilidade vibratória (precoce), marcha atáxica, prova de Romberg +, síndrome do neurônio motor superior.
As plaquetas e os leucócitos podem estar diminuídos também como no caso clínico, já que essas vitaminas são fundamentais para a síntese do DNA e consequentemente para mitose celular. A epistaxe e as petéquias no palato são decorrentes da plaquetopenia.
É importante pedir dosagem de B12 e de ácido fólico com a suspeita diagnóstica. Não diferenciando as duas, pode-se pedir a dosagem de ácido metilmalônico, que está aumentado na deficiência de B12 e a homocisteína está aumentada nas duas situações. Pode ser feito também o teste de Shilling para o diagnóstico de anemia perniciosa.
Os principais diagnósticos diferenciais para esse caso são a anemia de doença crônica (anemia normo/normo ou anemia micro/hipo) e a anemia aplásica. A primeira em decorrência da AR, contudo percebe-se que a PCR está negativa, refletindo que a doença está sobre controle com o tratamento, e há um aumento no ferro sérico. Já a segunda, também faz pancitopenia e macrocitose, contudo a macrocitose > 110 indica anemia megaloblástica. Outro diagnóstico diferencial incluído na própria anemia megaloblástica é a anemia perniciosa, onde há autoanticorpos contra as células parietais do estômago, que produzem fator intrínseco, responsável pela absorção de B12 no íleo terminal. Todavia, as pessoas acometidas são geralmente do sexo feminino, olhos claros, cabelos brancos precocemente, hx familiar, tipagem sanguínea tipo A com outras doenças auto-imunes associadas como vitiligo, hipo/hipertireoidismo, doença de Addison, etc. 




José Vitor Martins Lago



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